30.9.08

quando Marília enrubesceu

Marília sabia o conteúdo do envelope nas mãos do carteiro. Embora o polegar do homem de dedos largos cobrisse o logotipo, ela tinha ouvido que o papel seria vermelho e cheio de selos. Era essa a cor, era essa a carta que tanto esperava. Rasgou uma das bordas com as próprias mãos. Não podia adiar. Mas as primeiras linhas que fugiam do seu indicador desiludiram a mulher. Lá estava, escrita em tinta preta, a palavra ”lamento”. Foi suficiente para que as mãos cobrissem as lágrimas.

Largou o envelope. Olhou o relógio e lembrou-se da cliente das unhas de cereja. A memória sempre lhe facilitava o otimismo. Agarrou a bolsa com a mão direita tirou o cabelo do rosto e correu.

O dia passou devagar. Cliente café, gabriela, berinjela, até a azul surgiu de última hora. Colocou os óculos e leu na agenda: cereja – 17h. Os olhos colados nas unhas e no relógio.

Com quatro minutos de atraso – quase uma mão cheia – a cereja invadiu o salão. Lourdes, a cabeleireira, reprovou com o olhar a alegria indisfarçada de Marília. A manicure não tardou a arrumar a mesa, trocar a toalha e separar o esmalte cereja. Sorriu. Pegou as mãos lisas da cliente e começou a lixar suas unhas delicadamente. A cada raspada, tentava falar, mas nada saia.

Segurou com força a mão esquerda da cereja e, olhando para as unhas ainda descoloridas, conseguiu perguntar:
A senhora escreve filmes, né?
Sim - respondeu a outra e emendou – Já viu algum dos meus?
Não, mas ouvi falar.

A pergunta lhe cortou a garganta e quase lhe fez arrancar um pedaço de carne da cereja.

Suspirou e, por fim, conseguiu perguntar por Almodovar. Ela sabia que a cliente havia o conhecido numa dessas festas de artista. Sim, a resposta afirmativa reacendeu em Marília o desejo de ver sua vida na tela. Há meses terminara o roteiro de suas tragédias. Havia tudo lá. A separação, a morte da mãe, a solidão, o batom vermelho e a saia curta da filha numa esquina do centro. Ela havia conseguido o endereço da produtora do diretor pela jornalista de unhas amarelas, a mesma que lhe financiara o curso de roteiro.

O súbito e inesperado interesse da manicure por cinema cativou cereja. Ela lhe contou sobre o encontro com Almodovar e disse que ele estaria no Brasil no próximo mês para divulgar um de seus filmes. A notícia fez Marília tirar uma lasca da cliente. A mulher gritou e a toalha se encheu de vermelho. A mesma cor do envelope. Era o sinal.

Nos dias seguintes, Marília não pensou em outra coisa. Tirou pedaços e pedaços das mulheres que lhe entregavam as mãos. Lourdes só chacoalhava os cabelos e desdenhava daquele sonho. Enquanto isso, Marília era céu no purgatório.
Cuidou de si mesma, coisa rara. A última vez que fez as unhas foi no aniversário dela, quando Lourdes e as outras armaram uma festa. Comprou revistas sobre cinema e qualquer outra em que visse impresso o nome do diretor. Numa delas, atentou para as mãos daquele homem que segurava um prêmio e sorria enaltecendo as bochechas. Os dedos finos, elegantes, limpos, mão de quem trabalha pouco. Não havia esmalte, base. Apenas o cor-de-rosa natural. Eram aqueles membros que mudariam a sua vida, pensou Marília.

Ela mudou a cor do cabelo. O loiro vencido ficou renovado pelas mechas douradas. Vestiu-se de aquarela, escolheu o vestido estampado. Inspirou-se em Sua Mãe Também. Pintou-se, preencheu o branco. Era outra.

O dia por fim chegou. Foi a vez de Marília colorir as mãos. A cor era o vermelho. A mesma do envelope. Pegou o ônibus até a capital e, com um mapa desenhado por cereja, correu a cidade. Esbarrou com tantas cores que quase se perdeu. O cinza era triste e confuso. O amarelo, o verde e o vermelho revezavam-se muito rápido, antes que conseguisse completar as litras brancas.

Quando chegou no prédio de vidro, parou um minuto. Ajeitou o cabelo no reflexo, sorriu. Desceu os olhos às mãos. Ficou olhando para as unhas e viu uma imperfeição no indicador da mão direita, lamentou. Passou o polegar em cima e tentou disfarçar o arranhão, não conseguiu. Distraída, não percebeu quando uma multidão se acotovelava em suas costas. Virou-se com o barulho e viu câmeras de TV, mulheres de unhas mal-feitas com microfones nas mãos. Largou do dedo problemático e seguiu os repórteres.

Empurra, empurra. Com as mãos, Marília derrubou um homem alto, socorreu. Foi como cega sempre à frente, com os braços estendidos, cuidando da bolsa e da preciosidade que continha. Quase ficou de fora. Entrou enganada por que um homem de punhos enormes a jogara para dentro. Segurou-se na multidão.

Quando percebeu, estava diante de sua procura. Ela viu as unhas de homem próximas às dela, as mãos cuidadas e as mangas do casaco amarelo. Reconheceria aqueles dedos em qualquer lugar que fosse, pois os tinha revisado dezenas de vezes. Não teve tempo de ver as linhas, o futuro. Não pôde ver se estava cortada. Dezenas de mãos erguidas e um silêncio repentino. Uma câmera à frente, um obstáculo a mais. Tapou com uma das mãos a lente e avançou. Tropeçou e empurrou Almodovar sem querer. Tocou-lhe as mãos, parou. Sentiu a ponta dos dedos. Não olhou o rosto, não viu nada. Quis abrir a boca para nada.

O grandalhão pegou-lhe pelos braços e tapou-lhe o grito. Ela viu as mãos do diretor mostrando a saída. As lágrimas caíram, não pode controlar. Almodovar juntou a bolsa de Marília. Ela queria gritar para que as mãos tocassem o envelope. Conseguiu. Deixou que os braços a levassem.

Levantou o rosto e encarou o diretor. As mãos não importavam mais. Mirou o envelope e indicou com a cabeça. Ele entendeu. Recolheu o papel e tomou para si. Marília estava quase fora, mas viu quando ele entrou no elevador levando nas mãos a sua vida. Nunca mais lembrou do que havia escrito, agora detestava os dramas na tela.

* Este é o primeiro conto da minha vida. Era pra ter saído num livro, mas não deu certo. Troquei o final duas vezes. Quem ler, pode deixar um comentário sincero, por gentileza? Pode assinar como anônimo, não me importo.

2 comentários:

workaholicarol disse...

Há, eis entao o famoso conto. Adorei as referências às cores, e pelo que percebi o texto "telegráfico" tornou-se o teu estilo...
Lembro de vc contando que ia escrever... ficou ótimo!!!

J disse...

Putzz... tô chocada e boquiaberta... Adorei... Que dó da Marília, e que linda ela, e as cores e tudo e os detalhes e as mãos e meoo que pira! Gostei! Gostei mesmo!