29.9.08

discos na estante

Meu pai chegava em casa todos os dias depois das seis da tarde. Olhos cansados e a cara de bravo de sempre. Eu e meu irmão esperávamos o dia todo por aquele momento, quando minha mãe - sempre cheia de sacolas - e o meu pai vinham do trabalho.
Embora a nossa alegria fosse imensa - e a energia também - era um momento de silêncio. Engolíamos nossa euforia e descarregávamos o êxtase fuçando as coisas que minha mãe trazia do mercado. Depois, brincávamos bem quietinhos no quarto.
Mas o silêncio era regra apenas para nós. Na sala ao lado de onde estávamos, a música escapava pelos vãos das paredes de madeira. Meu pai ouvia seus discos preferidos - e proibidos para nós.
O que não se podia impedir era que nossos ouvidos se fechassem para aquele som. Foi daquela sala (nós chamávamos de "salinha") que escutei um dos refrãos que mais me integraram: "a tua piscina tá cheia de ratos/ tuas idéias não correspondem aos fatos/ o tempo não pára".
Impossível esconder a curiosidade aguçada pelas proibições. A sala consistia numa espécie de santuário, impenetrável por reles crianças. Sorte a minha que meus pais trabalhavam o dia todo. À tarde, sozinha em casa, sentava no chão e olhava disco por disco, letra por letra, mas não tinha coragem de ouvir (meu pai sempre teve olho clínico para mudanças na casa e a mão dele era muito pesada, como conferi em apenas duas vezes).
Lembro bem de uma capa amarela, com um rosto, com uma boca enorme, como que querendo rasgar um véu (era Goats Head Soup, dos Rolling Stones, que tinha Angie, uma das preferidas do meu pai). Gostava muito de outra de um moço loiro vestido como um selvagem - aliás tinha isso escrito em vermelho, era o nome do álbum dos Paralamas do Sucesso. O tênis branco do Cazuza na contra-capa e muitas outras imagens fazem parte da minha lembrança da salinha.
Os anos se passaram, fui crescendo e as portas do santuário ficaram menos pesadas. Eu podia entrar, tocar nos vinis e, quem diria, até ouvir uma música com meu pai. O ritual solitário noturno havia ganho mais uma adepta.
Hoje sei que quem me levou até lá foi o Cazuza. Tanta angústia e rebeldia, que o meu coração ainda ingênuo e limpo, não conseguia entender me chamavam muita atenção. Meu pai me contou que ele tinha Aids como quem revela um segredo. Lembro que não entendi, mas li a entrevista histórica nas páginas da Veja. Quando ele se foi, chorei escondida no quarto.
A salinha continua no mesmo lugar na "minha" casa. Sobreviveu às reformas frankensteins e ganhou uma nova estante. Permanecem lá as preciosidades da casa: livros e discos. Alguns dos primeiros peguei como herança antecipada, os segundos, não tive coragem. Mesmo depois de ganhar um toca-discos portátil, não podia mexer nas relíquias do meu pai. Ele já não cumpre mais o ritual na salinha, mas nunca esqueceu da música. Agora, ele assiste DVDs de shows no quarto, sempre sozinho e em silêncio. Eu faço o mesmo.
*Esse texto é uma homenagem a uma das principais influências da minha vida: meu pai.
** Eu e a Ana estamos em sintonia. Antes que eu visse que ela tinha postado uma homenagem à mãe dela, havia pensado nesse texto. Feliz coincidência.

Um comentário:

J disse...

Teu pai tem um ótimo gosto... Gostaria de ter uma salinha dessas com uns vinis desses! Parabéns!